‘House Of The Dragon’ (2022)

★★★★ — Cerca de 200 anos antes dos eventos de Game Of Thrones, a sucessão do trono foi disputada na famosa ‘Dança dos Dragões’. Esta temporada relata os eventos que levaram à grande guerra civil Targaryen.

House Of The Dragon marca o regresso do pequeno ecrã a Westeros, a dramática e sangrenta terra de tronos, usurpadores, ganância, ódio, crueldade e violência, guiados pela maravilhosa obra de George R.R. Martin, ‘A Song Of Ice And Fire’, cuja escrita impecável e imprevisibilidade narrativa foi transformada no que foi, provavelmente, a maior série televisiva de sempre, no seu auge.

Tal como os incontáveis fins trágicos de algumas das nossas personagens preferidas no decurso de ‘Game Of Thrones’, a própria série experienciou o seu próprio final trágico, pelo menos em escrita, narrativa, continuidade, e decisões criativas que nos fizeram chorar pelos motivos errados. O final deprimente da lendária série e a espera por The Winds Of Winter deixaram o franchise à deriva, perdido em indecisões dos estúdios da HBO sobre que prequelas haveriam de criar para explorar mais a fundo o mundo criado por George R. R. Martin, e por entre cancelamentos, indecisões, e o seu hype e impacto quase esquecido, eis que finalmente chega House Of The Dragon, pela mão de Ryan Condal, Miguel Sapochnik, e o próprio George R. R. Martin, que assumiu um papel mais secundário para se poder concentrar na escrita de um dos livros mais aguardados de sempre (e que, no momento deste artigo, vai a 3/4 de ser concluído, segundo o autor!).

House Of The Dragon é, para responder já à pergunta de ouro, fantástico!

Tudo, desde a escala, fotografia, som, banda sonora, arte, vestuário, realização, e (muito importante) a própria escrita, são de grande qualidade, superando até mesmo a obra literária na qual se inspira, em algumas partes. Ainda que com as suas imperfeições em certas decisões criativas, o novo marco do franchise é um regresso glorioso que, apesar de não apagar a mancha da ‘oitava temporada’, destaca-se pela sua qualidade e é único no seu próprio mérito.

Baseada em partes do primeiro volume de ‘Fire and Blood’, que conta, através de relatos de personagens, a história da ascensão da casa Targaryen, desde a chegada de Aegon, o Conquistador, a Westeros, até à queda da dinastia com a morte de Aerys II, o Rei Louco (parte que virá no volume II), esta série de Ryan Condal, começa no ano 101, cerca de 200 anos antes dos eventos de Game Of Thrones, durante o grande concelho do Velho Rei Jaehaerys I, cuja sucessão foi posta em causa devido ao falecimento dos seus herdeiros, e concentra-se na famosa Dança dos Dragões e os eventos que levaram à grande guerra civil Targaryen.

Das 14 pretensões ouvidas em Harrenhall para a sucessão, apenas duas foram consideradas, a de Viserys Targaryen e Rhaenys Targaryen, tendo o primeiro sido escolhido para sucessor, apesar da pretensão mais forte ser a de Rhaenys, que se encontrava à frente na linha de sucessão. Até ao momento, nenhuma mulher se havia sentado no trono, pois a tradição dita que o título de rei deve ser passado ao mais velho herdeiro masculino.

Imediatamente, a história dá um salto de 9 anos, uma característica recorrente ao longo da temporada, mergulhando para dentro do reinado de Viserys I, onde as primeiras sementes de discordância no reino e do abalo da Casa do Dragão são plantadas, quando o rei decide nomear a filha, Rhaenyra, herdeira do Trono de Ferro, após ter falhado em reproduzir um herdeiro masculino e o processo ter custado a vida à sua esposa, numa cesariana sangrenta e explícita com toda a visceralidade esperada de uma obra dentro do mundo de ‘Game Of Thrones’.

O primeiro episódio de House Of The Dragon faz um bom trabalho em reintroduzir Westeros ao público, revivendo um pouco de tudo o que é esperado por uma série neste Universo — grandes paisagens, dragões, intriga política, imensa variedade de personagens, violência, sexo, e o regresso ao que sempre foi o principal tema na obra de George, a sucessão do trono.

Ao contrário da saga principal, House Of The Dragon joga muito com saltos temporais, devido ao facto de se basear em relatos de diferentes personagens num livro que mais parece um conjunto de memórias resumidas. A primeira temporada desenrola-se ao longo de 20 anos, e acompanha a vida de Rhaenyra, interpretada na primeira metade da temporada por Milly Alcock, uma adolescente rebelde e conflituada com o desejo de ser livre, voar no seu Dragão e visitar todos os cantos do mundo, e o dever real de ocupar o trono, casar-se, e manter forte e firme a casa Targaryen.

Devido aos saltos temporais, Rhaenyra na segunda metade da temporada passa a ser interpretada por Emma D’Arcy, e é aqui que realmente arranca House Of The Dragon, que até ao momento se dedicou a estabelecer personagens-chave, o mundo (ou a porção do mundo) de Westeros em que nos encontramos (viajamos muito entre King’s Landing, Driftmark, Dragonstone, e outras terras mais no Sul e solarengo Westeros) e a evolução da personagem principal desde a adolescência até à idade adulta, onde se vê confrontada por problemas, semeados por erros da própria, mas também gerados pela complexidade da sucessão e o equilíbrio na própria família, desde a disputa entre si e a amiga de infância/ sogra Alicent Hightower (Emily Carey em adolescente; Olivia Cooke na idade adulta), à legitimidade dos seus filhos, tornando-se uma narrativa de grande qualidade ver o crescimento de Rhaenyra desde uma adolescente rebelde até se tornar uma mulher madura e inteligente, pronta a enfrentar o destino e a lutar pelo que é seu por direito.

Apesar da nomeação de Rhaenyra e a luta pela herança do trono de ferro ser o tema-chave da série, a mesma é muito mais que isso. Há uma complexidade no mundo de Westeros que cria intriga a cada canto, com um conjunto vasto de personagens tão ricas que nos deixa ansiosos por ver como as mesmas irão interagir umas com as outras, especialmente considerando os saltos temporais e as âncoras narrativas deixadas antes dos mesmos, o que nos leva a um ponto essencial para o sucesso de House Of The Dragon.

É uma história grande em escala e profundidade narrativa, mas ao mesmo tempo relativamente concentrada e fechada a certas partes do reino. Grande parte da trama está centrada dentro da casa Targaryen e os membros de famílias próximas, como os Hightower e os Velaryon, o que permite um foco na escrita de personagem e desenvolvimento das mesmas, tornando a série um intenso character-drama onde o guião e direção são, pela maior parte, impecáveis. Coisas pequenas que aconteceram em episódios anteriores ganham resoluções mais tarde, ainda que subtilmente, como pequenos olhares ou interações entre personagens, que contam muito sem ser praticamente necessário que as mesmas expliquem o que se passa e porque se passa.

Há uma cena num funeral que é uma das peças mais brilhantes de escrita combinada com realização que vi este ano, em que as personagens estão, no que parece ser uma meia hora, mas que podiam ser três, simplesmente a olhar umas para as outras, com olhares desconfortáveis e poucas palavras. Por esta altura, já têm uma certa animosidade acumulada e não se vêm à anos, mas devido à ocasião, tiveram que se juntar, então a tensão que paira no ar com o silêncio no diálogo, liderado por atuações imaculáveis, deixa-nos com pele de galinha e prontos a saltar ao ouvirmos um simples cair de um alfinete. Não é muito comum em entretenimento mainstream nos dias de hoje vermos cenas montadas desta maneira, é uma grande lufada de ar fresco!

Outro pormenor impressionante, ainda na escrita, e parabéns aos argumentistas que trabalharam com Condal e Sapochnik, são os próprios diálogos. A originalidade, entrega, o detalhe na construção, incluindo o bastante recorrente dialeto valiriano, parecem tão de acordo com a escrita de George R. R. Martin que quem não leu o livro poderá presumir que terão sido copiados do mesmo, o que não é o caso — não há mais que meia dúzia de frases em diálogo nesta porção de ‘Fire and Blood’!

Como já referido, as atuações são, de uma ponta à outra, soberbas, começando e destacando, em menção honrosa, Olivia Cooke (Alicent Hightower) e Rhys Ifans (Otto Hightower), mas predominantemente, além de Emma D’Arcy como Rhaenyra, Matt Smith, que interpreta Daemon Targaryen, o Rogue Prince que partilha uma relação de amor-ódio com o irmão Viserys. Daemon é uma personagem imprevisível, ousada e implacável, que apresenta traços de vilão e anti-herói, mas, no entanto, apesar de todos os conflitos, ama a sua família e mostra ao longo do tempo sinais de maturidade, atribuindo uma complexidade à personagem que nos faz querer torcer por ele, mesmo quando comete atrocidades que apenas no Universo de Westeros podemos fingir que não aconteceram.

Muitas destas emoções que o príncipe Targaryen convoca em nós provém da prestação de Matt, que domina todas as cenas em que se encontra, sendo apenas superado por Paddy Considine, que dá vida ao rei Viserys Targaryen, numa performance tão épica que merece todos os prémios e nomeações que lhe possam atribuir! Paddy é fantástico como Viserys, um homem honrado e de bom coração que relembra Ned Stark, e que, no fim de tudo, será recordado como uma das personagens mais adoradas deste Universo. É um rei que ama a sua família mais do que tudo, e que apenas deseja proteger a mesma, mas o seu desejo de paz e honra acabam por prejudica-lo quando pessoas à sua volta se aproveitam da natureza do mesmo para o seu próprio ganho, situação essa que se complica quando uma misteriosa doença começa a corroer-lhe lentamente o corpo. Mesmo com o prolongamento da doença com o passar dos anos, a sua resolução e desejos mantém-se firmes, e o derradeiro momento da personagem acontece numa poderosa cena em que o mesmo tem que se arrastar para o trono, apesar de mal se aguentar em pé, para uma decisão importante — aqui, a combinação da atuação com a direção, e a belíssima banda sonora de Ramin Djawadi, transforma a mesma numa cena tão marcante que relembra o impacto emocional de Game Of Thrones no seu prime!

Ainda que House Of The Dragon seja incrível pela maior parte, nem tudo é perfeito em Westeros. Há alguns problemas narrativos ao longo da temporada que surgem com os saltos temporais, que nos deixam questionando como é que certas personagens se encontram em determinada situação, e o que aconteceu durante o tempo que passou em consequência do que ficou em aberto antes de tais saltos. Estas pequenas incongruências, apesar de se notarem, não prejudicam muito a série, considerando que serviram maioritariamente para acrescentar pequenas camadas de desenvolvimento às personagens principais e a fazer o set up para o que vai acontecer mais à frente.

O único momento da série que realmente não fez sentido nenhum aconteceu no episódio 9, o tão típico e famoso episódio de Game Of Thrones, em que há sempre um plot twist imprevisível. É aqui que House Of The Dragon toma uma decisão criativa e irracional que paradoxa a paciência e o pacing que desenvolveram ao longo da história, quando decidem incluir uma cena bombástica que contradiz a personagem implicada e os seus ideais, em prol de espetáculo visual, na esperança de introduzir um ‘momento épico’ na série. Entende-se que é necessário por vezes balançar a narrativa entre um meditativo character-drama e espetaculares momentos explosivos de CGI em escala massiva, para a audiência que não segue o livro, mas espetáculo porque sim já deu provas de não resultar (Game Of Thrones — temporada 8).

A nível técnico, House Of The Dragon é cinema no pequeno ecrã, de qualidade de topo! A arte, a escala, o trabalho de câmara, fotografia e cor dão à série um visual distintivo. Vemos belas paisagens em planos abertos que apanham dragões a balançar entre nuvens, com CGI de topo; Dragonstone regressa de modo impressionante, posicionado sobre nuvens baixas em pores de Sol dourados, relembrando a cor dos Targaryen, assim como em cima das montanhas de Monsanto, na Idanha-a-Nova, uma localização fenomenal para gravar uma série deste calibre. Isto, combinado com som, não só da banda sonora épica, mas também o sound design nos pequenos detalhes, especialmente na construção de tensão em cenas importantes, e a montagem delicada atribuem uma característica de autor a House Of The Dragon que a distingue de tudo o resto e nos transporta de olhos-esbugalhados para o mundo de ‘A Song Of Ice And Fire’.

Se o excelente trabalho que Ryan Condal, Miguel Sapochnik e a sua equipa fizeram ao adaptar esta primeira parte, a partir de um capítulo relativamente ‘seco’ de ‘Fire and Blood’ já foi assim tão bom, a julgar pelo que acontece na porção da ‘Dança dos Dragões’ do livro, então a segunda temporada será algo completamente fora de série!

Segue o trailer da primeira temporada de House Of The Dragon.